quarta-feira, dezembro 29, 2010

De Laura Mulvey, Mercenários e Crepúsculo

Introdução

Em “O Prazer Visual e o Cinema Narrativo” e em suas reflexões sobre o artigo, Laura Mulvey evidenciou o olhar predominantemente masculino e o papel que a mulher desempenha no cinema clássico narrativo.
Apesar do crescente avanço nessa representação, ainda hoje muito pouco mudou no espaço e função que o gênero feminino tem no mainstream hollywoodiano. Esse trabalho vai reconstruir a visão apontada por Mulvey nesses dois artigos a partir de duas grandes bilheterias do ano, o filme de Sylvester Stallone Os Mercenários e a série Crepúsculo. Um filme que é voltado exclusivamente para o público masculino e outro para o feminino.

A dicotomia do olhar e Os Mercenários

O olhar cinematográfico foi construído sobre o inconsciente da sociedade patriarcal, e o erótico no cinema foi constituído a partir disso.
Essa construção oferece dois tipos de olhar: o escopofílico e o narcisista.
Na escopofilia o prazer está no próprio ato de olhar e a mulher funciona como base erótica para a obtenção desse prazer. O olhar narcisista é construído a partir da fase do espelho, em que a criança reconhece a sua imagem no espelho como superior ao próprio corpo.
Os Mercenários se estrutura a partir desses dois conceitos.
A única mulher presente na trama segue a estratégia apontada por Budd Boetticher:
“O que importa é o que a heroína provoca, ou melhor, o que ela representa. É ela que, ou melhor, é o amor ou o medo que ela desperta no herói, ou então a preocupação que ele sente por ela, que o faz agir dessa maneira. Em si mesma, a mulher não tem a menor importância.”
Num primeiro momento, talvez um reflexo do impacto que as teorias como as de Mulvey gerou em Hollywood, a “mocinha” do filme se estabelece como uma personagem forte e de personalidade própria. Mas imediatamente depois ela é reduzida a uma sombra, a apenas a motivação das ações do herói, sem nenhuma função em si própria. Mesmo num mundo que reconhece a função que a nova mulher ganhou na sociedade ela é subjugada, no fim, à mesma representação do início do cinema narrativo e todas as suas conquistas são apenas aparentes e superficiais.
Existe em Os Mercenários uma indicação de um papel maior a ser desempenhado pela mulher, mas ela volta ao seu lugar como objeto de prazer escopofílico – com o congelamento do fluxo da ação para a pura contemplação erótica. Quando a “mocinha” entra em cena, a narrativa para e dá lugar à exploração erótica de sua figura feminina.
Na complementação de sua estrutura do olhar Os Mercenários se constrói como um buddy movie – com o erotismo homossexual inerente a isso – para construir o prazer da imagem espelho.
Os homens da trama são todos os maiores ícones da masculinidade, os grandes heróis dos filmes de ação dos anos 80. São todos fortes além da realidade, capazes além da realidade, com coordenação motora e habilidades além da realidade.
Eles constituem o homem ideal com o qual o espectador se reconhece e obtém o seu prazer na substituição de seu próprio “eu” pelo “eu” da tela. Num mecanismo que o cinema narrativo tornou-se especialista em criar.
Os Mercenários funciona como fornecedor dos dois maiores prazeres do olhar patriarcal no cinema. Trazendo o prazer escopofílico na exploração do erotismo feminino e o prazer narcisista na representação do homem perfeito e ideal. E é daí que vem o seu sucesso.

Crepúsculo e a mulher espectadora

Essa interpretação do cinema narrativo feita por Laura Mulvey, porém, ignorava o aspecto da mulher espectadora, considerando o espectador sempre como um “homem”. Ela então volta ao texto para problematizar a questão. Como o mecanismo de identificação é afetado por uma mulher espectadora?
Uma primeira hipótese é que essa mulher se encontre em sintonia com o prazer ofertado pelo cinema narrativo – do prazer voyeurístico no erótico feminino e do prazer narcisista do homem ideal – e aceite a sua “masculinização” em troca do controle da diegese e da liberdade de ação que lhe permitem uma identificação com o herói. Que encontra sustentação na teoria freudiana da fase masculina do desenvolvimento da feminilidade que daria base para esse tipo de identificação.
Mas também existe a questão do melodrama, quando a mulher é colocada no centro narrativo, com uma mulher protagonista incapaz de alcançar uma identidade sexual estável e é dividida entre a passividade feminina e a masculinidade regressiva. Com a função da mulher oscilando entre o “casamento” – a única função específica do sexo – e a negação desse conceito, com uma adoção de sua masculinidade freudiana.
A série Crepúsculo oferece uma narrativa que abraça esses dois conceitos de feminilidade, apesar de seu enfoque absurdamente machista e retrógrado.
A função “casamento” aparece como a única possível para a mulher, mantendo a equação de mulher sendo igual à sexualidade. E a presença feminina no centro da história permite que ela seja abertamente sobre sexualidade, tornando-se um melodrama.
O aspecto altamente conservador da narrativa da série Crepúsculo a impede de problematizar essas questões e, pelo contrário, ela só usa os caminhos apontados pela teoria de Mulvey como uma casca que molda a sua narrativa como meio de reafirmar o aspecto patriarcal, machista e misógino da sociedade. Numa perigosa subversão dos benefícios trazidos pelas teorias feministas na representação da mulher no cinema.
Mesmo em filmes ainda altamente machistas, que seguem integralmente os preceitos da teoria contida em “O prazer visual e cinema narrativo”, como Os Mercenários, é aberto um papel maior para a representação feminina, mesmo que ele seja apenas ilusório.
É como se o machismo tivesse se apropriado do feminismo – e o subvertido – para se legitimar de maneira ainda mais forte. A realização de filmes com aparência feminista serve como forma de maquiar o machismo inerente da nossa sociedade e passar a ilusão para a mulher espectadora que essa questão – a dominação da visão machista no cinema – já foi superada.
Crepúsculo continua seguir as reflexões feitas por Laura Mulvey sobre Duelo ao Sol, de 1946, com uma protagonista dividida entre dois personagens masculinos opostos. Com um personagem representando o caminho romântico “correto” que deve ser seguido por toda mulher e com outro representando um impulso mais sexual e que permitiria a sua “masculinização”, sua transformação em moleca. Essa dicotomia serve apenas como forma de reafirmar a posição submissa que a mulher deve assumir na sociedade patriarcal.
Por outro lado, Crepúsculo oferece um tipo de prazer visual, o prazer narcisista associado à fase espelho, onde a mulher se identifica com o protagonista masculino pela masculinização de seu olhar.
Os homens em Crepúsculo são perfeitos, com força, habilidades e capacidade além do real – como os protagonistas de Os Mercenários. A identificação funciona da mesma forma nos dois filmes, mesmo que o público aqui seja predominantemente feminino. A mulher traveste-se numa figura masculina e se identifica com a figura ideal mostrada na tela, mesmo com a protagonista feminina sendo frágil, dependente e inexiste sem a presença do homem.
Sua identificação funciona em dois níveis: primeiro o da identificação com a fase masculina freudiana e segundo como a representação do parceiro ideal de casamento, permitindo-a assumir o seu lugar “correto” como mulher.
Toda a potência do personagem masculino gera o prazer na medida em que oferece a aparente liberação da mulher através da identificação travestida – o olhar da espectadora feminina é masculinizado – e da sua associação com ela através do casamento.
Laura Mulvey termina suas reflexões afirmando que a fantasia da masculinização da mulher espectadora está inquieta nas suas roupas de travesti – e a tentativa de alterar o antigo papel ocupado pela mulher no cinema, ou pelo menos a tentativa de maquiar a manutenção desse papel mesmo em filmes machistas como Os Mercenários parecem confirmar sua afirmação. Entretanto o sucesso de filmes como os da série Crepúsculo parecem indicar justamente o contrário, que as mulheres estão confortáveis em seu travestimento e com a posição que lhe é permitida na sociedade patriarcal contanto que lhes seja dada a aparência de liberdade.

2 comentários:

  1. Ai, Jesus. Eu lembro de ter revisado esse texto e ter achado foda.
    Mas não vou ler de novo agora pra comentar não. *assovia*

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  2. Vou te falar que se você não fosse meu amigo, eu me recusaria vir aqui comentar e fazer meus olhos doerem :roll:

    well, concordo completamente com o negocio do crepúsculo ai. Esse machismo maquiado é um nojo. Essa série só consegue ter meu desprezo xD

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