domingo, dezembro 12, 2010

Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 1

Era a sessão de pré-estréia à meia noite, o cinema estava lotado de pessoas fantasiadas. A ansiedade era tanta que todos gritaram assim que o projetor foi ligado, me impedindo de ouvir as instruções de segurança. Mas assim que o logotipo da Warner apareceu na tela o silêncio era abismal, ninguém respirava.
É o fim de uma era que começou em 1997 com a publicação de Harry Potter e a Pedra Filosofal, o primeiro filme foi lançado em 2001. Não havia crianças na sala, eram todos jovens adultos que cresceram junto com Harry e que estavam ali para testemunhar o marco do fim de suas infâncias. Felizmente, não foram só os espectadores que cresceram, os personagens evoluíram junto e a trama também.
Desde o segundo filme da série não há uma crítica que não diga “esse é o filme mais sombrio até agora”, o que nos leva a crer que a tendência é que, se houvesse, o capítulo 10 seria apenas uma tela preta. E esse Harry Potter 7 parte 1 chega perto disso.
O filme já começa deixando bem claro que aquele universo fantástico dos primeiros filmes ficou para trás. O já citado logotipo da Warner enferruja e apodrece enquanto a câmera se aproxima dele e a primeira cena do filme é um primeiríssimo plano dos olhos do Ministro da Magia (Bill Nighy) fazendo um pronunciamento à imprensa sobre o tortuoso caminho a se seguir. Logo em seguida uma manchete de jornal noticiando o assassinato de trouxas (pessoas não bruxas) e paralelamente vemos Hermione apagando sua existência da memória dos pais e os tios de Harry fugindo de casa para um lugar mais seguro. E, como se não bastasse, logo depois, numa intensa cena de ação e perseguição aérea/terrestre, vem a morte da coruja Edwiges, símbolo da inocência, e do professor Moody, o último mentor de Potter.
E isso antes mesmo do meio do primeiro ato do filme. A história mesmo só começa depois e acompanha o caminho traçado no fim do sexto episódio, mostrando a busca e a destruição das horcruxes (pedaços da alma escondidos num objeto) de Voldemort, a única maneira de derrotá-lo. Mesmo a história das relíquias da morte, três objetos mágicos de grande poder, é deixada de lado e desempenha um papel apenas periférico na trama.
Visualmente esse tom sombrio fica a cargo do fotógrafo português Eduardo Serra (Moça com Brinco de Pérola), que criou um ambiente belíssimo. O filme é todo escuro e dessaturado, tudo é preto ou cinza e a única cor permitida é o roxo escuro. Para isso ele é ajudado pela escolha de locações (Harry e seus amigos estão sempre caminhando por cenários desolados que mais lembram filmes pós-apocalípticos) e pelo design de produção de Stuart Craig (oito vezes indicado ao Oscar, inclusive por dois Harry Potter’s, tendo vencido 3).
A direção, pela terceira vez, fica a cargo de David Yates (The Girl in the Café) que, acostumado a fazer filmes políticos, contrabandeia várias questões para dentro do filme. Por exemplo, Voldemort toma o poder no Ministério não através de um confronto direto, mas por um golpe de estado nos bastidores baseado retomada das tradições, dos bons costumes e da antiga glória, protegendo a comunidade bruxa da decadência do liberalismo, tudo isso com amplo apoio da mídia e ao mesmo tempo em que persegue seus detratores violentamente através de torturas, assassinatos e desaparecimentos (algumas dessas torturas e assassinatos nós testemunhamos na tela). Como isso é diferente da ascensão do nazismo ou mesmo do golpe militar de 64 no Brasil? Com os personagens agindo como dissidentes políticos caindo na clandestinidade, com cartazes estampando o rosto de Harry com os dizeres “Indesejável Número 1” que lembram os cartazes de “Terrorista” com o rosto de militantes de esquerda dos anos 60/70.
Infelizmente esses temas são ignorados pela trama do filme, apesar do papel maior que desempenham nos livros, e só estão presentes pelas mãos de Yates.
Aliás, as diferentes mãos dos vários diretores que a série teve foi o grande trunfo da franquia Potter no cinema. Principalmente a contribuição realista de Alfonso Cuarón no terceiro filme, a qual Yates – depois de seguir uma linha mais fantasiosa no quinto e no sexto – retoma com toda a força.
Os filmes de hoje são intimamente ligados ao realismo e à estética do documentário – Harry Potter 7 é todo feito, com exceção das cenas de ação que seguem o tratamento padrão, com câmera na mão – e há um hibridismo de gêneros como tendência no cinema mundial. Mesmo os filmes de fantasia e ficção seguem o fluxo. Um exemplo claro disso foi a franquia Batman, compare o universo fantástico das versões de Tim Burton, que se passavam num mundo ficcional e não se preocupavam em nenhum momento em se colocar no mundo real, com as novas versões de Christopher Nolan que baseiam o filme no princípio que aquele Batman poderia existir no mundo real e o tempo todo se preocupam em legitimar mesmo os gadgets mais absurdos do herói. Até o Superman novo foi transferido de Metrópolis para Nova York. A distância entre a fantasia dos anos 80 e a fantasia atual é absurda, com a verossimilhança sendo confundida com documentarismo.
Sem julgar os méritos dessa mudança, em Harry Potter os filmes são melhores quanto mais realistas (O universo estritamente fantasioso dos dois primeiros filmes deu lugar a um universo mais acessível, próximo, no terceiro. Depois voltou à fantasia e agora retorna ao realismo).
A cena que sintetiza o realismo e o tom político do filme é a sequência que se passa dentro de um café. Fugindo da tentação de transformá-la num grande duelo mágico (como a batalha vista no quinto filme), Yates dá à cena um tratamento de tiroteio. Tudo ali dentro se passa como se estivesse ocorrendo uma troca de tiros e não feitiços sendo disparados por varinhas, numa atmosfera que me lembrou muito filmes como Munique e O Grupo Baader Meinhof.
Contando com a participação de quase todos os grandes atores britânicos contemporâneos, todo o elenco de apoio se destaca. O único ponto fraco poderia ser a atuação do trio principal, já que quase todo filme se concentra neles, porém seu desempenho é sempre satisfatório, mesmo nas cenas que mais exigem deles. Rupert Grint, o Ron, deixou de lado seu papel de alívio cômico e mostra um lado muito mais intenso. Emma Watson, a Hermione, já convence na cena em que precisa apagar a memória dos pais. E Daniel Radcliffe, sempre o pior do trio, consegue passar o peso que é ser Harry Potter.
E a atuação dos três é essencial para o funcionamento do filme, já que ele todo se baseia na relação entre eles nos longos períodos que passam isolados. Eles são melhores amigos há sete anos e a sua união é visível. Repare na cena em que o trio dorme lado a lado e quando Harry acorda ele percebe as mãos de seus dois amigos quase que encostadas uma na outra, como se tivessem adormecido de mãos dadas; ou na cena da dança entre Harry e Hermione, que num momento de extrema tensão conseguem fugir um pouco da realidade pela intensa amizade e intimidade entre os dois, numa cena delicada e bela.
Um dos destaques do filme é justamente a coragem de fazer de cenas como essa o centro do filme, com cenas de não ação e longos períodos em que absolutamente nada acontece e o tempo passa devagar. Mesmo que isso frustre espectadores que tenham ido ao cinema assistir a um thriller de ação. E é isso que faz com que o filme fuja do tom episódico dos capítulos anteriores, o tempo parece fluir como se deve agora que o roteirista Steve Kloves teve que espremer apenas metade do livro em duas horas e meia – apesar de ficar claro que grandes partes tenham ficado de fora, já que as estações do ano se intercalam de maneira muito abrupta. Numa hora começa a nevar, na cena seguinte tudo já está tomando pela neve por ser véspera de natal e algumas cenas depois já não há neve alguma e é primavera.
Tudo isso, é claro, pode ser também apenas uma estratégia de marketing já que a segunda parte promete ser uma única sequência de ação contínua de duas horas e meia.
Outro grande destaque é a sequência feita em uma animação estilizada para ilustrar o “Conto dos Três Irmãos”, ligado às relíquias da morte, e que sendo belíssima é o ponto alto de todo o filme.
O que não pode deixar de ser mencionado, afinal esse é um filme de fantasia, são os efeitos especiais, que são extremamente realistas. Mesmo sabendo que quase tudo o que você está vendo na tela foi filmado em fundo verde e construído no computador, em nenhum momento isso é visível ou perceptível. As criações digitais casam de maneira bastante orgânica com o todo. Os elfos domésticos estão perfeitos e parecem reais – não mais os bonequinhos de plástico dos filmes anteriores – e isso é fundamental para a ligação do espectador com a parte mais dramática do filme.
Mas o filme possui também alguns problemas crônicos. Primeiro, ele depende do conhecimento prévio do espectador não só dos últimos seis filmes – lançados ao longo de quase 10 anos! – como também dos livros, já que alguns furos da adaptação, que deixou de fora vários elementos importantes para a trama, começaram a aparecer. E as tentativas de suprir esses furos nem sempre são satisfatórias.
É uma sequência feita para os fãs, alguém entrando no cinema apenas para esse filme corre o risco de assistir a tudo como um turista – apreciando a beleza das paisagens, sem realmente entender o contexto das coisas.
Em segundo lugar, ele sofre da sina dos filmes divididos em duas partes e que não oferecem nenhum tipo de conclusão. Preocupado em deixar toda a ação para a Parte 2, o filme acaba de forma abrupta – sem nem deixar uma indicação do que virá a seguir – e tudo fica muito em aberto. O mesmo problema enfraqueceu o final de O Senhor dos Anéis – As Duas Torres, mas não esteve presente em A Sociedade do Anel – e nem em Harry Potter e o Enigma do Príncipe, se for para ficar dentro da série.
No fim, o filme serve a seu propósito: o de funcionar como preparação para o encerramento da saga Harry Potter. E o faz como todos os outros seis filmes antes, de maneira eficiente, mas só.

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