quinta-feira, agosto 20, 2009

Academic Series #2

História do Cinema: A Verdade e o Neo-realismo Italiano.

I – Introdução.

A herança deixada pelo neorealismo italiano na história do cinema é incalculável.
Seu estabelecimento determina a morte do cinema clássico narrativo e o nascimento do cinema moderno. Sua estética ainda hoje molda grande parte da cinematografia mundial.
Esse trabalho analisará penas um pequeno fragmento dela: “A Verdade”.
Pegando quatro filmes posteriores ao neorealismo analisarei neles a marca deixada por esse movimento na manifestação, estetização e projeção da verdade.
Dois desses filmes adotando literalmente uma estética neorealista para transmitir sua história, seus conceitos. Adaptando aos tempos atuais a natureza do cinema italiano pós segunda guerra.
Um deles adotando parte de sua estética para a legitimização de sua natureza fantástica.
E por último um que se utiliza de outros valores para transmitir a mesma ideia.

II – Análise.

1. Da Verdade Neorealista


“Entre os Muros da Escola” e “O Filho” são filmes de temática completamente diferentes.
Enquanto “O Filho” acompanha um pai, que dá aulas profissionalizantes para jovens infratores, tendo que lidar mais uma vez com a morte de seu filho quando seu assassino torna-se um de seus alunos. “Entre os Muros da Escola” acompanha um professor de uma escola pública francesa durante um ano de uma turma de sétima série.
Esteticamente, porém, são filmes irmãos.
Diriam que ambos adotam uma postura quase que documental, baseando-se nos documentários para estabelecerem sua estética.
No entanto esquecem-se que a estética documentarista moderna nasce com o neorealismo italiano.
Ambos filmes fundamentam-se no “Real”, na “Verdade”, para funcionarem como história. Nenhum deles seria factível, e portanto perderiam toda sua dramaticidade implícita, não fabricada, se o espectador não acreditasse piamente naquilo como verdadeiro. Como se aquilo realmente não tivesse se desenrolado diante das câmeras, sem artificialização, sem qualificação.
Foram, então, beber na fonte da estética realista do cinema ocidental, o neorealismo italiano.
“O Filho” rejeita quase que completamente a montagem, é um filme de planos sequências. A única função da câmera é seguir o personagem principal através de seus dilemas mentais, sem jamais interferir.
Durante boa parte do filme podemos apenas contemplar suas costas enquanto ele vai à algum lugar. Não há intromissão ou manipulação, nem mesmo no tempo, não há atalhos enquanto o personagem principal revisita a morte de seu próprio filho na convivência daquele que lhe tirou a vida.
O filme abandona , também, a trilha sonora, que se tornaria, no caso, apenas intrusiva. Não existe elaboração na fotografia, ele é todo filmado em locações, não há maquiagem, nada que nos lembre que nós estamos, na verdade, vendo um filme.
“Entre os Muros da Escola” adota essa mesma estratégia.
Sem utilizar-se de atores, cada aluno interpreta a si mesmo, com exceção àquele expulso, enquanto o professor é interpretado pelo próprio autor do livro que inspirou o filme.
O filme corre todo como se fosse um documentário, como se as câmeras simplesmente acompanhassem o dia a dia daquela sala de aula, de seu professor e da escola.
Toda uma estética é adotada para que o expectador creia que esteja testemunhando os fatos como que se estivessem a acontecer, com as câmeras simplesmente acontecendo de estar ali. Essa estética vem, mais uma vez, do neorealismo.
Como em “O Filho” não há cenários, figurinos, maquiagem (cada espinha é visível no rosto de cada adolescente), trilha sonora ou qualquer outra artificialização.
Se somos levados a crer que aquilo realmente é verdade é porque nós fomos criados, e já estamos acostumados a ver essa abordagem em reportagens e documentários, em oposição à estética hollywoodiana de show e entretenimento.
E toda a estética do documentário moderno foi moldada por aquilo que o neorealismo estabeleceu como sendo verdade.
Qualquer coisa mostrada como real, mesmo que não real, é aceita pelo público como tal, já que a generalidade da cinematografia mundial o dirige nessa direção.
A verdade neorealista tornou-se a verdade geral ao ser incorporada e adotada pela indústria cinematográfica como um todo.
Os dois filmes incorporam isso à sua temática e usam como trunfo para contar sua história.
Você vê o sofrimento de um pai, você vê toda uma escola francesa, não apenas sua representação. Tudo isso do impacto causado pelo neorealismo e nas raízes profundas deixadas por ele.


2. De uma outra Verdade


O neorealismo é o nascimento do cinema moderno, mas sua estética não é a única a propor a verdade, o real.
Outras estéticas surgiram ao longo da história com suas próprias propostas, radicalizando a neorealista ou divergindo dela.
O movimento Dogma 95 é só um exemplo de radicalização, abolindo de forma completa tudo aquilo que o neorealismo evitava.
Mais interessante, porém, é observar como fantasias e ficções se apóiam numa estética para incutí-las de veracidade, que sua própria natureza fantástica as tira. Estética essa muitas vezes derivada daquela mesma estética vinda do neorealismo italiano, ou revestindo-se em outras para criar sua própria verdade.
Algumas fantasias só passam a funcionar como história a partir do momento em que o espectador aceita aquilo como sendo real, e no cinema elas precisam adotar estratégias para que isso aconteça.
Quando Alfonso Cuarón aceitou adaptar o livro “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” para o cinema ele quis fazer algo diferente dos dois primeiros filmes. Ele acreditava que o sucesso da série de livros residia justamente na veracidade que ela trazia.
Ao contrário da maioria das fantasias com seus mundos, realidades e universos paralelos, o mundo de Hary Potter era palpável. Por mais fantástico que ele parecesse ele sempre se apresentava como real, e a autora havia trabalhado cuidadosamente para que isso acontecesse.
Cuarón achava que a única maneira de adaptar a obra com sucesso seria conseguindo levar esse espírito para as telas do cinema.
Para isso ele adotou suas próprias estratégias.
Primeiramente ele eliminou ao máximo a utilização de efeitos de computador, algo impensável numa produção hollywoodiana, tudo o que pudesse ser feito diretamente na frente das câmeras seria feito. Vários truques reais de ilusionismo foram adicionados ao longo do filme, mesmo a criação das criaturas conhecidas como dementadores só foi feita em cgi após sucessivas tentativas fracassadas de fazê-los de outra maneira.
Em segundo lugar ele abandonou a alegre fotografia utilizada nos filmes anteriores e a substituiu por uma mais escura e compatível com o ambiente cinzento, frio e chuvoso em que se passa a história.
Em terceiro, ele alterou o figurino, as próprias roupas do trio principal de atores passou a fazer parte das cenas. E até mesmo na impossibilidade de se retirar os uniformes durante as cenas das aulas ele pediu que cada ator o vestisse de um jeito diferente, à sua própria maneira.
As cenas foram, ao seu máximo, filmadas em locações pela Inglaterra e Escócia em detrimento de estúdios.
Cenas cotidianas e banais foram incluídas ao longo da história e travellings passaram a ser utilizados para exemplificar a passagem do tempo, acabando com o tom episódico dos longas anteriores.
Como se não bastasse, ao próprio tema musical principal do filme foi adicionado uma justificativa diegética para a sua introdução.
Alfonso cercou-se de referências estéticas do neorealismo e introduziu-as em meio a uma história fantástica para poder legitimizá-la. Para trazer o ambiente realista que estava procurando, para dar ao filme aquilo faltava aos anteriores: Verdade.
Como resultado obteve a adaptação mais fiel à história original dentre os filmes da série lançados, mesmo que seu roteiro seja o que mais fuja ao livro.
Outro recente filme de ficção que usa uma estratégia de projeção da verdade é a animação da Pixar “Wall-e”.
Um filme que mostra ainda mais coragem ao romper com padrões hollywoodianos por se tratar de uma animação destinada ao público infantil.
Toda a primeira parte do filme se passa como um filme mudo, sendo os únicos “diálogos” compostos pelos sons do robô Wall-e.
Ambientada numa distopia futurista em que o planeta Terra se encontra totalmente devastado e consumido pelo lixo produzido pelo homem, ele é habitado apenas por um robô, responsável pela limpeza do planeta, o único ainda em funcionamento, e por, é claro, baratas.
A humanidade, isolada em uma estação espacial distante do que restou do planeta, se tornou obesa e com os músculos e membros atrofiados devido a não utilização.
O filme se vale de uma série de estratégias para imbuir de verdade, sua verdade, o público.
Ele exagera ao caricatural para mostrar o que a preguiça e a inatividade, física e mental, gera nas pessoas.
Curioso notar que enquanto todas as pessoas da história são dirigidas apenas pela futilidade e inatividade, o único ser dotado de emoções realmente humanas, como o amor, é um robô.
É um filme que se utiliza de uma estética diferente da neorealista para se estabelecer, mas que compartilha com o movimento a ideia que o cinema é uma forma de expressão voltada a criar a dignidade humana.
Se vale de outros meios para atingir o mesmo objetivo, levar uma verdade ao espectador.

Um comentário:

  1. Que bonito!

    "Entre os Muros da Escola" foi um soco no meu estômago.

    O que eu mais gosto desta tentativa/busca de evidenciar/criar/imitar a realidade/verdade é o fato de o espectador querer encontrar, a partir das 'verdades'apresentadas, a SUA verdade, desse modo, endossando o que Machado disse, no conto "A chinela turca: uma história sobre o desejo recaldado", 'o melhor drama está no espectador e não no palco'.

    Enquanto assistia ao "Entre os Muros da Escola", fazia digressões sobre o seguinte: temos a verdade do professor, temos a verdade dos alunos, e, qual é a verdade em que eu quero acreditar? Tive momentos de compaixão e ira para com as duas partes, chorei, em alguns momentos. Seriam as lágrimas a minha verdade? O meu chorar foi algo catártico? Foi a minha forma de sentir que a verdade estava muito além do alcance dos professores ou dos alunos? Ela, a verdade, é uma questão estrutural, até. Vejos "os muros da escola" neste contexto, como uma metáfora. O que são REALMENTE esses muros? Muros/cercados/delimitação? Quem/o quê cerca a escola? Limita a escola [escola aqui, no sentido amplo, não estou falando apenas do prédio, estou falando naquilo que a constitui como algo vivo, naquilo que lhe dá movimento]?

    P.S.: "Quando Alfonso Cuarón aceitou adaptar o livro “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” para o cinema ele quis fazer algo diferente dos dois primeiros filmes. Ele acreditava que o sucesso da série de livros residia justamente na veracidade que ela trazia." - DEIXE DE SER PUTINHA DO CUARÓN!

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